Ao orientar PT a endossar urgência do texto que equipara aborto a homicídio, governo demonstra a que ponto pode sacrificar ideais em nome da governabilidade
Em tempos de crise intensa na articulação política, é de se esperar que o governo faça sacrifícios pelo caminho. É preciso escolher batalhas. Com pouco capital político para dedicar às votações no Congresso, o Planalto admite colocar determinadas pautas em segundo plano.
Com base nessa premissa, líderes petistas têm repetido como um mantra a frase “são pautas da esquerda e não do governo”, referindo-se a temas ligados à chamada pauta de costumes. Entram nessa lista assuntos como a descriminalização do porte da maconha, a saidinha de presos em datas comemorativas e o aborto.
A ideia é que o governo não dispõe de capital político para frear todas as articulações que tentam puxar tais debates para a direita, dada a maioria conservadora no Congresso. Afinal, o Legislativo brasileiro é hoje, majoritariamente, posicionado à direita.
Mas deixar de brecar um movimento da ala conservadora do Congresso não é o mesmo que endossá-lo.
Orientação
Na votação da urgência do projeto que equipara o aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio, o governo fez mais do que não frear a medida.
Segundo mostrou o blog, de acordo com fontes, deputados do PT foram orientados a chancelar a urgência do projeto. Um projeto que vai contra tudo o que o partido defende quando o assunto é a interrupção de gravidez.
O PT sempre foi defensor da descriminalização do aborto em qualquer circunstância. Historicamente, a sigla afirma que criminalizá-lo prejudica as mulheres em maior condição de vulnerabilidade. O próprio presidente Lula já externou em mais de uma ocasião tal posicionamento. E pagou o preço até mesmo em época de eleição.
Críticas
Apenas para ilustrar a discussão, imagine uma menina estuprada recorrentemente por um familiar, que engravide de seu agressor. É grande a possibilidade de que a gravidez leve tempo a ser descoberta. Se tal menina vier de uma família pobre, a dificuldade pode ser ainda maior. E a gravidez pode facilmente ser descoberta somente após as 22 semanas.
O que os críticos do projeto alegam é que o texto é preocupante principalmente nos casos de estupro. Que, na prática, o Congresso pode acabar obrigando parte das mulheres a gerarem o filho de seus agressores. Seria dificultar, em muitos casos de maneira irreversível, o exercício do direito ao aborto legal. A lei brasileira permite a interrupção da gravidez em casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.
É legítimo que deputados ligados à ala mais conservadora do Congresso apresentem propostas que condizem com seus princípios e seus valores. E que defendam que as leis que regem a prática sejam mais rígidas. Mas, ao chancelarem a urgência do texto, parlamentares petistas descartam seus próprios ideais, em nome de uma suposta governabilidade que Lula pretende alcançar.
Tal acordo teria sido desenhado para assegurar um aceno do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) aos setores mais conservadores da Câmara. Em tese, o acerto pressupõe deixar em aberto a apreciação do mérito. Não haveria expectativa de votar rapidamente o texto, como informou a âncora da CNN Tainá Falcão.
Se o PT e o governo apostam que o Congresso deixará o assunto na gaveta, é uma aposta de risco. Ainda mais para um governo que vem acumulando derrotas na Câmara e que admite não dispor de capital político suficiente fazer vigorar toda sua pauta prioritária. Imagine então a pauta que é “da esquerda, mas não do governo”.